Perda, luto e transformação

O trabalho do luto é um trabalho de reconstrução do mundo interno, ao mesmo tempo que se renovam os vínculos com o mundo externo.

O luto é um processo natural de reação à perda de alguém próximo ou de algo com valor afetivo significativo. Reflete a frustração de uma necessidade básica de apego. É altamente subjetivo, sem regras fixas amiúde, que deve ser compreendido à luz do ritmo de cada pessoa, do seu contexto e da perda em si, desprendido de pressupostos e enquadramentos estanques e limitadores. As reações são variadas e todas válidas: do choque à negação, da tristeza à zanga, da apatia à culpa, da indagação às reflexões existenciais. Tudo isto pode ser compreendido à luz do percurso do luto, no longo caminho para a aceitação e reconstituição. A tristeza pode vir sem choro, a raiva pode estar contida e a verdadeira aceitação pode demorar, mesmo quando as exigências da realidade e as rotinas se impõem. É um processo longo e gradual que, apesar de assumir uma variedade considerável de mecanismos de ação, parece convergir tendencialmente para um determinado conjunto de fases do luto dito normal. No processo de aceitação da realidade da perda, podem existir momentos prévios de sensação de irrealidade e descrença, de negação e recusa – é o lugar do choque e do entorpecimento. As cerimónias e rituais ajudam a aceitar a perda e a tomar consciência da realidade, e são também uma oportunidade para expressar emoções, partilhar homenagens e dividir a tristeza, num contexto de solidariedade e experiência comum da perda e reconhecimento compartilhado da realidade. Pelo caminho, é também natural a mobilização de comportamentos de procura e anseio pela pessoa que se perdeu, não só pela necessidade do reencontro, mas sobretudo pela validação do seu desaparecimento que é, em si, o reconhecimento da permanência da perda. É então chegado o tempo de experienciar e processar a dor, a manifestação emocional da perda, que assume expressões variadas pela subjetividade do sofrimento. A dor do luto advém da persistência do desejo insaciável pelo que se perdeu e a constante repetição da desilusão por não o ter de volta. É necessário dar lugar à dor e ao sofrimento, nas suas variadas formas de expressão, para que estes possam ser elaborados e processados, qual metabolismo psicológico da perda. A vivência depressiva no luto adquire uma dimensão adaptativa, quando acolhida sem defesas extremas, permitindo a integração da perda e a transformação da relação. A expressão de emoções cria espaço para que possam também surgir emoções novas e mais positivas, renascendo a esperança de que as dores do luto poderão ser toleradas e superadas – a capacidade de sublimação dá lugar a impulsos reparadores e construtivos. Começa a ser possível recordar sem sofrimento intenso e constante. O caminho continua no ajustamento adaptativo à perda, na redefinição de rotinas e expectativas, de novos modelos de representação e de relação com a pessoa que partiu, na vivência quotidiana da nova realidade. A relação com a pessoa que partiu não termina, mas necessita de ser reformulada para um lugar onde esta possa ser recordada, ao mesmo tempo que se permite seguir com a vida, continuar a viver depois da perda e reinvestir em novas relações e desafios. O trabalho do luto é um trabalho de reconstrução do mundo interno, ao mesmo tempo que se renovam os vínculos com o mundo externo. É um processo construtivo de transformação e fortalecimento da capacidade de resiliência. O luto não acontece só quando nos confrontamos com a morte, sendo um processo comum face a outros tipos de perdas com valor afetivo significativo: o amuleto da sorte que se perdeu, o dente de leite que caiu, a amizade que se rompeu, o amigo que emigrou, o relacionamento que acabou, o projeto que falhou, o tempo perdido, a mudança de casa, a perda de emprego, a redução dos contactos sociais imposta pela pandemia. Viver implica necessariamente passar por uma sucessão de lutos e cada fase de desenvolvimento representa um luto. Ao nascer, o bebé confronta-se inconscientemente com a sua primeira experiência de luto: cá fora, tem de respirar um ar que não lhe é próprio, numa atmosfera desconhecida, um novo ambiente diferente de quando estava submerso no útero materno; tal como escreveu Vasco Gato: “bem-vindo ao continente dos frágeis / podes parar de nadar”. O adolescente despede-se dos seus traços infantis e redefine a sua maneira de estar em casa e no mundo lá fora. O jovem adulto renuncia à sua dependência funcional das figuras parentais e abraça uma vida mais autónoma no mundo dos crescidos. O desenvolvimento em si, a passagem de uma fase para a outra, envolve a perda de certos padrões de funcionamento, modalidades de relação que, sendo evolução e progresso, não deixam de ter impacto no próprio enquanto processos de luto – dores de crescimento. Mesmo os acontecimentos que implicam mudanças importantes e positivas na vida (saída de casa dos pais, casamento, filhos, ascensão profissional) podem desencadear simultaneamente um certo grau de angústia e vivência depressiva, por representarem a perda (renovação) de certos aspetos da própria identidade. O luto pelas inevitáveis frustrações sentidas ao longo do crescimento, também nos prepara, em certa medida e mesmo que inconscientemente, para as perdas mais explícitas e dramáticas que podemos sofrer ao longo da vida. Também a forma como elaborámos determinadas perdas no passado, pode influenciar processos de luto atuais. É importante que cada perda, cada mudança, cada fase de desenvolvimento seja vivida respeitando os processos de lutos necessários e as emoções subjacentes, pela sua função transformadora e conducente ao reequilíbrio. As relações não se perdem, transformam-se, e nós podemos continuar a viver, mais resilientes e com propósitos e recursos renovados.